O Brasil projetado no novo disco de Chico César — lançado após um silêncio de oito anos sem um álbum de inéditas — é único. Sua amplidão abarca o rural e o urbano, sem que essa dicotomia represente um choque entre passado e futuro — seu rural e urbano são do presente, e na verdade eles nem aparecem como uma dicotomia, mas sim como parte de um só cenário. É essa nação, esse país, esse Estado, o “Estado de poesia”. Mais como chão do que como tema, afinal a unidade do Brasil não é nunca tematizada no disco, que fala sobretudo da paixão pela amada (é esse o estado de poesia de que fala a canção-título), mas também das paixões que movem o discurso contra o racismo, o olhar agudo sobre os desmandos do agronegócio e a ternura pela triste cidade na qual “a burguesia não quer mais florzinha na praça” (como em “No Sumaré”).
A trajetória de Chico explica muito desse olhar. Ele é filho da Paraíba e da cultura nordestina, mas já lá ele propunha uma abordagem vanguardista sobre as tradições. Em São Paulo, ele amplia e expõe sua habilidade de cancionista. A isso soma-se a experiência política na Secretaria de Cultura da Paraíba. Tudo isso cruza o “Estado de poesia”.
Dentro dessa perspectiva, é representativa a abertura do disco com o brado “Acorda, acordeon” em “Caninana” — o instrumento ícone de mil coisas, do baião de Luiz Gonzaga à pré-bossa nova de João Donato, do novo sertanejo ao regional de Caçulinha no “A bossa eterna”, de Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro (sonoridade claramente evocada na afirmativa “Quero viver”). Na faixa, há uma abordagem pop do baião, similar ao que Gilberto Gil propôs nos 1970. A primeira parte segue cantando o amor (sua poesia lúdica e contundente em “Caracajus”, de versos como “maracatus de baques vidrados”), o poeta como museu da musa (“Museu”), o bolero delirante de vinho e de maconha e de saudade (“Da taça”).
A segunda parte corta sem peso temas como conflitos religiosos (“Guru”), racismo (no reggae “Negão”, com Lazzo Matumbi) e moradores de rua (“No Sumaré”, uma reedição de “Saudosa maloca” sem maloca).
Entre as duas partes, “Miaêro”, que traz o sonho do pobre, de um dia “passear no Brasil” e “comprar uma sandália/Daquela de brasileiro/Chinela que no chão pisa/E faz um chiado maneiro”. Distância e intimidade, o país mais externo e o mais íntimo. (com O Globo)