á na década de 1930, o debate sobre irregularidades nas contas do governo brasileiro estava em pauta e ocupava as manchetes dos jornais. Em 27 de abril de 1937, durante o mandato do presidente Getúlio Vargas, o também gaúcho Francisco Thompson Flores, vice-presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), constatava o desrespeito às leis orçamentárias cometido pela Contadoria Central da República, responsável na época por organizar as contas federais no Ministério da Fazenda. Em decisão unânime e até hoje única na História do Brasil, as contas do governo Vargas foram rejeitadas pelo órgão fiscalizador.
Segundo reportagem do GLOBO, um “longo e minucioso relatório” sobre a gestão financeira do ano de 1936 apontava o pagamento de despesas sem aprovação prévia. “Tem se tornado um uso, e actualmente um abuso, os pagamentos por conta do crédito do Thesouro, no Banco do Brasil, pela expedição de um simples cheque do Ministério da Fazenda”, dizia o documento. A atuação independente do ministro ocorreu às vésperas da implantação da ditadura do Estado Novo (1937-45), iniciado com a quarta Constituição brasileira, apelidada de “Polaca” e outorgada em novembro daquele ano. Vargas só voltaria ao posto em um governo democrático no ano de 1951. Ainda assim, a rejeição das contas e o parecer do ministro do TCU Thompson Flores não passaram despercebidos. Ainda no Estado Novo, em 26 de abril de 1945, um decreto presidencial de Vargas o colocou em disponibilidade, o que significou seu afastamento do cargo público.
Na história recente, a tensão entre o governo e o TCU foi recorrente. No período de redemocratização do país, após o fim da ditadura (1964-85), a pedido do presidente José Sarney, foi lançada a “Operação Transparência”. Era uma ação de fiscalização em autarquias e empresas públicas com o objetivo de assegurar o corte orçamentário previsto no Plano de Controle Macroeconômico. A operação integrava ainda a proposta de desburocratizar o TCU, até então caracterizado pela morosidade e falta de poder.
No início da década de 1990, as contas do governo do presidente Fernando Collor de Mello foram “aprovadas com falhas” em parecer do órgão. Entre as irregularidades, de acordo com apuração do GLOBO, estavam a emissão de papel moeda em limites superiores ao permitido e um valor de recursos do Tesouro Nacional utilizado sem licitação e 93% superior aos gastos efetivamente realizados. Na ocasião, o jornal ressaltava que, em quase seis décadas, o TCU havia rejeitado apenas os números apresentados por Getúlio Vargas.
No primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, as ressalvas também apareceram na avaliação do TCU sobre as contas de 1996. Um relatório destacava a diminuição dos gastos em áreas prioritárias, como saúde, educação, cultura e saneamento, em relação ao ano anterior. No início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, as críticas se voltaram à baixa média de renda dos trabalhadores e à queda nas verbas para a saúde. As contas foram aprovadas com 22 ressalvas e dez recomendações.
Em abril de 2015, a equipe econômica da presidente Dilma Rousseff foi acusada, em parecer do TCU, de adiar repasses de recursos do Tesouro Nacional para bancos públicos, como BNDES e Banco do Brasil, melhorando artificialmente as contas do governo em 2014, ano eleitoral. Batizadas de “pedaladas fiscais”, as manobras descumpriram a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), segundo o Ministério Público (MP) junto ao TCU. No último mês, um relatório do MP pediu a rejeição das contas de Dilma por fraude da LRF e citou a atuação de Thompson Flores na reprovação das contas do governo Getúlio Vargas. “Se, após a implantação do Estado Novo, o corajoso gaúcho Thompson Flores foi vítima de represália com disponibilidade compulsória decretada pelo ditador, na era democrática os magistrados de Contas dispõem de garantias especiais, que constituem as salvaguardas necessárias para exercerem, com plena independência, coerência, isenção e compromisso com a sociedade brasileira”, destacou o documento.
O TCU é um tribunal tipicamente republicano, criado por Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, em 7 de novembro de 1890, um ano após a Proclamação da República. O órgão é responsável por examinar as contas federais e tem a missão de verificar sua legalidade antes da análise do Congresso Nacional. Cabe aos deputados e senadores a decisão de aprovar ou rejeitar as contas do governo. Ao todo, compõem o TCU nove ministros, seis indicados pelo Congresso, um pelo presidente da República e dois escolhidos entre auditores e membros do Ministério Público. (O Globo)