O Brasil vive uma guerra civil não declarada, com a violência vitimando não apenas jovens e adolescentes, em sua maioria negros e pobres, mas também policiais civis e militares. Essa foi uma das afirmações do representante da Associação Nacional de Praças (Anaspra), cabo Elisandro Lotin de Souza, durante a audiência pública interativa promovida pela CPI do Assassinato de Jovens na noite desta segunda-feira (5).
O quadro crítico da violência no país também foi comentado pelos outros dois debatedores convidados para a audiência, a representante da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), a delegada federal Tatiane Almeida, e o representante da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), André Praxedes.
A reunião foi conduzida pelos senadores Telmário Mota (PDT-RR) e Lídice da Mata (PSB-BA), presidente da CPI do Assassinato de Jovens do Senado. Lídice registrou que vários cidadãos enviaram perguntas e sugestões à CPI durante a audiência abordando temas como redução da maioridade penal, ressocialização e reintegração de presos, violência contra policiais e outros. A senadora concordou com os convidados sobre o dia a dia perigoso e violento que vivem os policiais brasileiros. Telmário acrescentou que o policial “também é produto da sociedade” e vive cotidiano violento, com baixa renda e poucos direitos trabalhistas.
Modelo arcaico
Na opinião do cabo Elisandro Lotin de Souza, o modelo de segurança pública brasileiro é arcaico, retrógrado e obsoleto. Segundo ele, a lógica e as normas da segurança pública brasileira ainda é a mesma da época da ditadura militar. Os policiais militares são formados para serem inimigos da sociedade, acrescentou.
O representante da Anaspra também afirmou que os órgãos de segurança pública do Brasil protegem determinados seguimentos da sociedade. Para ele, esses órgãos e agentes são direcionados para a proteção “do capital, do dinheiro, do poder, da aristocracia muito bem endinheirada”.
Elisandro disse ainda que morrem seis vezes mais policiais no Brasil do que nos Estados Unidos. Nos últimos cinco anos, sublinhou o cabo, mais de três mil policiais foram mortos no país, em trabalho ou em horário de folga. Ele defendeu que a sociedade e os governantes se unam para buscar uma polícia cidadã, que respeite os direitos humanos e previna e combata crimes sem cometer irregularidades.
Entretanto, o militar disse que os policiais civis e militares têm vidas bastante conturbadas também, com baixos salários, jornada de trabalho injusta, humilhações e assédio por parte dos superiores. Para ele, os policiais militares ainda são tratados na corporação como na época da ditadura, sem direitos humanos, sem dignidade e respeito.
- Como o policial vai realizar um serviço de segurança pública de qualidade se ele próprio não tem seus direitos respeitados? Não há efetivo, não há condições de trabalho, eles são explorados e humilhados. Nós, policiais militares, civis e bombeiros somos também vítima desse processo de insegurança pública generalizada – disse o cabo Elisandro.
Grupos de extermínio
A delegada federal Tatiane Almeida falou sobre o trabalho da Polícia Federal no combate aos chamados grupos de extermínio, cujas principais vítimas são jovens negros. Segundo ela, 70% das mortes violentas no país vitimam jovens negros e pobres. Para a delegada, o racismo é uma realidade incontestável no Brasil e a seletividade racial na abordagem policial é um dos retratos desse racismo. Ela garantiu que as estatísticas mostram que a atuação de grupos de extermínio não resulta em diminuição de crimes.
Os grupos de extermínio não estão interessados em praticar justiça social, advertiu Tatiane, mas geralmente descambam sim para o cometimento de crimes em busca de vantagens financeiras, praticamente substituindo os criminosos. Em 2014, disse a delegada, policiais civis e militares mataram mais de três mil pessoas.
Apesar de a Polícia Militar ser muito letal, ponderou Tatiane, os policiais, que em sua maioria também são negros, também são vítimas da violência. Ela citou recente pesquisa feita com policiais de todo o país que mostrou a realidade desses profissionais: ameaças em serviço e fora do serviço, assédio moral e humilhação no ambiente de trabalho, acusações injustas, distúrbios psicológicos, falta de apoio da sociedade e do Estado, baixos salários e cotidiano extenuante.
- Não se pode culpar só o policial por essa circunstância porque a questão é muito mais institucional. Especialmente no Brasil, a polícia militar, que sofre tanto, é uma polícia muito letal, como é uma polícia que é muito vítima de mortalidade, e tem nas fileiras um grande número de negros. Então, quando a gente está discutindo aqui a questão de mortalidade de negros, a gente tem que lembrar também que os policiais morrem muito. E na polícia militar eles são maioria – disse a delegada.
Epidemia
Em sua explanação, o defensor público André Praxedes afirmou que a violência é um problema epidêmico no Brasil. A violência é crônica segundo ele: entre 1980 e 2010, quase 800 mil brasileiros foram mortos por armas de fogo, mais da metade dessas vítimas jovens entre 15 e 29 anos. O convidado informou que, atualmente, o Brasil é o país líder mundial em mortes por armas de fogo, superando países superpopulosos como China e Índia. -
Eu, no exercício da nossa profissão, espero e quero buscar que tenhamos uma polícia cidadã, uma polícia que respeite os direitos humanos de todos os cidadãos deste país, não somente da classe média ou somente das elites. Não. De todos os cidadãos, sem distinção de qualquer um – disse Praxedes.
Dados
A taxa anual de mortalidade de um policial em serviço em São Paulo em 2013, por exemplo, foi de 41,8 por 100 mil policiais. Já no Rio de Janeiro, a situação é ainda pior. Conforme dados contabilizados pelo Sindicato dos Policiais Civis (Sinpol), 114 agentes da lei, entre civis e militares, haviam sido assassinos em 2014 no estado, a maioria durante a folga. Somente na polícia militar, 96 foram mortos, em serviço ou em folga, o que dá uma taxa de 198 homicídios por 100 mil.
A realidade fora no Brasil é muito diferente. Nos Estados Unidos, entre 2007 e 2013, a taxa de homicídios de policiais foi de 4,7 por 100 mil. Na Alemanha, foram mortos apenas três policiais em 2012, frente a um efetivo de 243 mil — uma taxa de mortalidade de 1,2 por 100 mil na tropa. Os dados são do relatório final da CPI que investigou homicídios de jovens negros e pobres na Câmara dos Deputados, apresentado em julho deste ano.
Agência Senado