O Ministério Público Federal (MPF) na Paraíba recorreu de sentença que condenou a empresa Portal Administradora de Bens Ltda. a pagar R$ 10 milhões de indenização, por danos ambientais causados com as obras de construção irregulares do Manaíra Shopping, em área de preservação permanente (APP), na capital do estado. A sentença, proferida em 19 de abril de 2016, pelo juízo da 1ª Vara da Justiça Federal na Paraíba, acolheu apenas parcialmente os pedidos do Ministério Público.
Para o MPF, “a degradação ambiental praticada acabou resultando num verdadeiro ‘prêmio judicial’ bastante conveniente ao empreendedor infrator, uma vez que, com o pagamento de indenização terá legitimidade para ocupar as cobiçadas APPs, cuja exploração a lei não permite aos particulares, ainda que mediante o pagamento de vultosas contraprestações”. O órgão destaca que “somente o notório movimento do estacionamento pago, implantado na APP, já indica como foi pífio o valor de R$ 10 milhões” fixado na sentença.
O Ministério Público também entende que com a solução adotada na sentença recorrida “ocorre um verdadeiro estímulo ao ilícito, pois, a partir dela, passam os empreendedores a saber que se desejarem ‘comprar’ alguma APP, de ocupação legalmente vedada, basta invadir e devastar, pois, no final das contas, apenas pagarão um módico valor em juízo”, como ocorreu com o empreendedor condenado que “no final, conseguiu comprar a área que queria, após utilizá-la irregularmente, por longos anos, contornando assim a proibição legal de exploração econômica de APP”, alerta.
Juntamente com a indenização, a sentença recorrida determinou que a empresa condenada apresente e execute Projeto de Recuperação de Área Degradada às margens do rio Jaguaribe, no entorno do muro que cerca o prédio do Manaíra Shopping. O projeto deve incluir reflorestamento da margem do rio degradada pela construção ilegal de um muro do shopping, além do não lançamento de esgotos sanitários e outros líquidos para dentro do curso d’água.
Licenciamento ilegal – Na apelação, o Ministério Público pede a reforma da sentença para que sejam julgados totalmente procedentes os pedidos negados pelo juízo de primeiro grau (e requeridos agora, novamente, ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5). Dentre os pedidos, está a declaração da nulidade de todas as licenças ambientais concedidas pela Superintendência de Administração do Meio Ambiente (Sudema) ao empreendimento comercial.
Para o MPF, há flagrantes ilegalidades nas licenças concedidas pela Sudema ao Manaíra Shopping, por não haverem assumido validade formal, após a devida tramitação, sem sequer terem sido homologadas pelo Conselho de Proteção Ambiental, e por não respeitarem as áreas definidas como sendo de preservação permanente. Ademais, algumas construções sequer tiveram licença da Sudema.
No recurso, o órgão lembra que, ainda na fase do inquérito civil, havia requisitado à Sudema os processos do licenciamento. Mas, segundo alegado pela Sudema, “todos os processos que interessam a esta demanda teriam desaparecido misteriosamente”. Desse modo, o suposto “extenso licenciamento ambiental” do Manaíra Shopping, alegado pela empresa, não foi sequer demonstrado documentalmente nos autos.
Sucessão de equívocos – Na sentença recorrida, o Ministério Público aponta uma sucessão de equívocos na análise de mérito, dentre eles, além da sanção “absolutamente desproporcional à gravidade do ilícito ambiental (praticamente uma ‘venda judicial’ privilegiada de APP por módica quantia) ”, constata-se o subdimensionamento dos danos decorrentes das obras de expansão do Manaíra Shopping sobre o leito original e o leito desviado do rio Jaguaribe.
Isso porque medições do Ibama e levantamento fotográfico, com dados de satélite, atestam que na área do shopping, o rio Jaguaribe apresenta largura superior a dez metros, e disso resulta que a APP em cada uma das margens do rio Jaguaribe é de 50 metros, conforme determina o Código Florestal. Dessa forma, todas as estruturas que o Manaíra Shopping construiu sobre o leito original do rio estão em situação ilegal, o que abrange parte considerável do edifício principal, inclusive a casa de show Domus Hall e os cilindros metálicos localizados do outro lado da Avenida Flávio Ribeiro Coutinho.
Da mesma forma, também são ilegais as construções que o shopping erigiu nas margens do leito desviado do rio Jaguaribe, entre elas o edifício-garagem, um muro, as torres de refrigeração, a camada asfáltica e a subestação de energia elétrica, dentre outras intervenções. No entanto, o magistrado só menciona repetidamente a construção de um muro a menos de 15 metros do leito desviado do rio Jaguaribe, omitindo todas as outras construções, sem motivo aparente.
Em razão de intervenção humana realizada na década de 1940, o rio Jaguaribe passou a contar com uma bifurcação na área onde se localiza o Manaíra Shopping. A partir da bifurcação, uma parte do seu fluxo foi desviada para o rio Mandacaru e o rio Jaguaribe prossegue no seu leito original, que se prolonga até o Bairro do Bessa, tendo um trecho canalizado e encoberto pelo referido empreendimento.
O Ministério Público pede ainda que seja reformada a sentença na parte em que reconheceu coisa julgada quanto a acordo firmado em ação civil pública, promovida na década de 90 pelo Ministério Público Estadual, em relação à primeira invasão do leito original do rio Jaguaribe, uma vez que a União (proprietária da área), o MPF e a Sudema sequer participaram desse acordo. No entanto, para o Ministério Público Federal, mesmo que prevaleça o raciocínio da sentença nesse aspecto, o magistrado deixou de considerar as inúmeras obras irregularmente construídas sobre a área após o acordo.
Os danos ao meio ambiente, decorrentes das obras de instalação e de ampliação do shopping, “são tão evidentes e graves, mesmo a olho nu”, que o IBAMA constatou que “o estacionamento do Shopping Manaíra só não flutua nas águas do rio Jaguaribe porque os alicerces da construção do aludido empreendimento estão escancaradamente encravados nas margens do referido rio, ou seja, em área de preservação permanente”.
Redução indevida – Outra parte da sentença, rebatida com veemência pelo MPF, diz respeito a um precedente judicial utilizado pelo magistrado para justificar o entendimento de que as obras de ampliação do shopping invadiram menor APP nas margens do rio Jaguaribe. A sentença afirma que “a jurisprudência se consolidou” em aceitar o recuo de 15 metros estabelecido pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano quanto a APPs, localizadas em áreas urbanas, em razão de não ser possível “impor aos centros urbanos as mesmas restrições aplicáveis às áreas de menor densidade populacional”.
O órgão argumenta que a afirmação contida na sentença é “temerária” porque se baseia em apenas um precedente julgado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Apelação Cível nº 5008060) que ainda está sujeito a reexame no âmbito de recurso especial. Nesse caso, contrapõe o MPF, para que se pudesse considerar o entendimento do TRF4 como “consolidado”, seria preciso demonstrar, no mínimo, tratar-se de uma posição acolhida por uma corte nacional, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou por um número elevado de precedentes assemelhados oriundos de vários tribunais locais pátrios. Ao contrário, o STJ tem vários precedentes aplicando as distâncias mínimas previstas no Código Florestal também a áreas urbanas, como por exemplo o caso de um supermercado em Balneário Camboriú (SC) – Recurso Especial nº 664.886/SC.
Assim, o entendimento do Ministério Público é de que deve prevalecer o Código Florestal, que concedeu especial proteção às APPs, abrangendo áreas urbanas e rurais. Segundo o Código Florestal, a utilização das áreas urbanas deve, sim, observar o que está disposto no plano diretor e nas leis de uso do solo, mas respeitando os princípios e limites estabelecidos pelo próprio código. Isto é, as leis municipais até “poderiam ampliar as APPs, mas jamais reduzi-las”, argumenta.
Comunidade São José – Quanto ao argumento mencionado pelo magistrado, no sentido de que existem outras ocupações nas margens do mesmo rio, por comunidade de baixa renda (Bairro São José), a apelação destaca que existem projetos governamentais em andamento para a realocação da comunidade, que mais cedo ou mais tarde será realizada. Assim, caso prevaleça a sentença, é bem provável que no futuro, o Manaíra Shopping seja o único privilegiado a ocupar irregularmente as APPs do rio Jaguaribe e até mesmo o próprio leito do rio.
Para o Ministério Público, a comunidade de baixa renda merece tratamento diverso do que seria devido ao shopping, cujos danos ambientais causados ao rio Jaguaribe decorreram de busca por ampliação de lucros empresariais. “Obviamente, o tratamento do direito à moradia de uma comunidade desvalida deve ser diferente daquele conferido à ganância de uma grande empresa infratora”, argumenta o órgão, mostrando que a questão da moradia de pessoas desamparadas recebe tratamento diferenciado na legislação, que, inclusive, permite um recuo menor (da margem do rio) para casos de ocupações com perfil de baixa renda, “com a possibilidade de consolidação parcial prevista no artigo 7º, §2º, do novo Código Florestal”.
Pedidos reforçados – Além da declaração da nulidade de todas as licenças ambientais concedidas pela Sudema à empresa proprietária do shopping, o MPF requer a nulidade de quaisquer inscrições de ocupação de terrenos de marinha efetivadas pela União em favor da empresa. Também pede que o TRF5 determine à empresa que providencie a completa remoção de todas as construções indevidamente realizadas em APPs que estejam a 50 metros da margem do rio Jaguaribe.
Ponderou-se na apelação que, para agravar ainda mais a situação, a APPs em que está erguido o Manaíra Shopping não é área de propriedade privada, mas área pública de propriedade da União, sujeita à mera ocupação precária do particular. Logo, “não há que se falar sequer em restrição a direito de propriedade de particular pela legislação ambiental”, como consta da sentença recorrida, mas sim de “observância da Lei nº 9.636/98 que veda a inscrição de ocupação de áreas da União que “estejam concorrendo ou tenham concorrido para comprometer a integridade das áreas de uso comum do povo, de segurança nacional, de preservação ambiental ou necessárias à preservação dos ecossistemas naturais”.
Pedidos alternativos – Caso o Tribunal negue os pedidos, o Ministério Público pede que seja determinada, pelo menos, a manutenção de canal ao ar livre, com área verde preservada nas margens do rio Jaguaribe e praça pública em seus arredores, ou, em último caso, a colocação de área verde sobre a sua cobertura.
Caso o Tribunal não determine a remoção total ou parcial das edificações irregulares, pede-se que seja determinado o perdimento de todas as construções ilegais ou, mais especificamente, de toda a receita arrecadada em atividades econômicas do shopping, na área degradada, em favor da União ou dos municípios de João Pessoa e Cabedelo. Esta seria a consequência mais lógica e justa para a hipótese de manutenção das construções irregulares em cima de APP em violação à legislação, pois, dessa forma, o proveito econômico do ilícito seria destinado permanentemente à coletividade. Somente assim, os empreendedores “pensariam duas vezes antes de agredir gravemente qualquer APP, pois estariam correndo o risco de perder investimentos na área proibida”, argumenta o MP.
Caso o TRF5 acolha os pedidos alternativos, o MPF quer que o Tribunal também determine a destinação dos recursos para recuperação ambiental do próprio rio Jaguaribe, ao longo de toda a sua extensão, bem como de ecossistemas a ele relacionados de modo mais imediato, bem como para outros projetos de recuperação ambiental nos municípios de João Pessoa ou de Cabedelo e no Estado da Paraíba, nessa ordem de prioridade.
EIA/Rima – O magistrado também afastou a necessidade de Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) pelo empreendedor, com base em laudo pericial, segundo o qual a área ocupada pelo Manaíra Shopping está abaixo de 100 hectares – tamanho mínimo determinado pela legislação ambiental para exigência do EIA/Rima (Resolução Conama nº 01/86).
No entanto, para o MPF, parece evidente que “o soterramento de um rio e a completa supressão de APPs adjacentes justificariam por si sós tal exigência”. O órgão ainda argumenta que “obviamente não se encontra previsão desse caso na legislação de regência do licenciamento ambiental”, como apontou o magistrado, porque “tal hipótese não é admitida ou sequer cogitada pelo ordenamento jurídico pátrio”. Logo, “se o Judiciário está criando essa nova hipótese sem previsão legal, deveria determinar, no mínimo, a realização de EIA/Rima”, argumenta.
Mais pedidos – O Ministério Público ainda quer que a empresa seja condenada a publicar o inteiro teor da sentença (ou um extrato resumido) nos três jornais de maior circulação na Paraíba e que seja proibida de obter qualquer financiamento ou incentivo dos órgãos e entidades governamentais, até que demonstre ter reparado o dano causado na APPs.
O MPF pede ainda que a Justiça eleve o valor de R$ 10 milhões fixado pela sentença recorrida, a título de indenização pelos danos ambientais causados, levando em conta a alta lucratividade do empreendimento, conforme apuração mais precisa a ser realizada na liquidação do julgado.