Uma organização criminosa suspeita de desviar mais de R$ 1,6 bilhão do dinheiro público destinado à saúde na Paraíba e em outros dois estados. O grupo atuava através de duas organizações sociais: a filial gaúcha da Cruz Vermelha e Instituto de Psicologia Clínica, Educacional e Profissional do Rio de Janeiro, o IPCEP. Na Paraíba, um dos envolvidos foi preso na última sexta-feira (1º), em João Pessoa.
De acordo com o promotor de Justiça do Rio de Janeiro, Eduardo Santos, as organizações sociais “eram usadas como estudo, como laranjas, para desvios de recursos públicos”. Elas administravam hospitais e postos de saúde na Paraíba e no Rio de Janeiro. Contratos de R$ 1,6 bilhão de reais. O dinheiro era guardado no carro e entregues até em caixas de vinho.
O Fantástico encontrou um personagem denunciado por Eduardo Faustini sete anos atrás. “Uma das coisas que eu passo para os meus filhos e que eu aprendi: eu protejo meu contratante e meu contratante me protege”, disse Davi Gomes, dono da Toesa Service, empresa denunciada pelo Fantástico em 2012, na reportagem que mostrou como prestadores de serviço corrompem diretores de hospitais.
O filho de Davi, Daniel Gomes da Silva, é apontado pelo Ministério Público como o comandante dessa operação. Segundo o promotor de Justiça do Rio De Janeiro, Eduardo dos Santos, Daniel já havia sido dirigente da Toesa Service anteriormente e agora estava operando através de organizações sociais, tendo se infiltrado na Cruz Vermelha, filial do Rio Grande do Sul. Ele também chegou a fazer parte do Conselho Nacional da Cruz Vermelha.
“Além da Cruz Vermelha, essa rede criminosa usava como laranja uma segunda instituição filantrópica, que é o IPCEP. Essas duas entradas são ligadas ao chefe da organização criminosa, que é o Daniel Gomes”, enfatizou Eduardo Freitas Torres, promotor de Justiça da Paraíba.
A lista de hospitais e postos de saúde nas mãos da quadrilha era grande. Contratos vigentes entre 2011 e 2018. “A organização criminosa funcionava basicamente através da subcontratação de serviços junto com as empresas que eram associadas ou até mesmo controladas pelo comandante, o Daniel Gomes, e que tinham com ele uma contrato para devolução de parcelas de valores pagos, que eram apropriados pelo próprio Daniel ou repassados para agentes públicos e políticos”, explicou o promotor do Rio de Janeiro.
Flagrante de repasse
Em agosto de 2018, a secretária de Daniel Gomes chega a um hotel de luxo no Rio de Janeiro, com uma caixa na mão. O Ministério Público do Rio estava morando Michele Louzzada Cardoso e, por ocasião do monitoramento, foi identificado que havia uma operação de entrega de recursos.
Michele se senta para tomar um café, quando aparece Leandro Nunes de Azevedo, assessor da secretaria de administração, na Paraíba, nomeado em 2017 para ser gestor de contratos administrativos. Os dois não ficam nem três minutos juntos. Ela vai embora e a caixa fica em cima de uma cadeira. Leandro vai ao balcão assinar a comanda do café. Volta, pega a caixa e vai embora.
Nesse momento, entra na história Antônio Augusto Vicente de Carvalho, o Tuim, ex-diretor de uma unidade de saúde o Rio que passou a atuar no núcleo da quadrilha. “O papel dele era recolher os recursos junto aos fornecedores que participavam do esquema”, disse o promotor Eduardo Santos.
Em um telefonema gravado ao longo da investigação, Tuim conta a um amigo como guarda o dinheiro arrecadado.
Tuim: Meu carro é meu banco, né?
Amigo: Por que teu carro é teu banco?
Tuim: Meu dinheiro sai sempre comigo,né. Não gosto de deixar o dinheiro em casa, não gosto de deixar o dinheiro na conta, não gosto de deixar o dinheiro em p…. nenhuma.
O promotor ainda destaca que Antônio Augusto desviava para si uma parte do dinheiro para cobrir as dívidas de jogo. Em outro telefone, Tuim conversa com um amigo conhecido como Galinha:
Tuim: Ele tá achando que eu sou incompetente, né? Ele não tá achando que eu meti a mão no dinheiro desse tamanho todo,né?
Galinha: Tendi. Quanto é que você pegou do Daniel?
Tuim: Já venho pegando há muito tempo. De pouquinho em pouquinho deve bater uns 500 paus.
Prisões dos envolvidos
Quando foi preso, Tuim tinha R$ 250 mil dentro do carro dele. Já na casa do pai de Daniel, a polícia encontrou R% 1, 2 milhão. Daniel Gomes foi preso pela Polícia Federal dentro de um avião, no Rio de Janeiro, em um voo internacional quando voltava de Portugal. Mais dez pessoas foram presas no Rio de Janeiro e na Paraíba na Operação Calvário, entre elas empresários acusados de fazer parte do esquema.
A prisão mais recente aconteceu na sexta-feira (1º). Leandro Nunes de Azevedo, o homem da caixa de vinho, foi preso em João Pessoa, na rua. Ele já tinha sido exonerado da secretaria de administração.
Durante a apuração da reportagem do Fantástico e antes da prisão de Leandro, o repórter Eduardo Faustini foi até a casa dele e deixou recados e contatos, mas não obteve respostas.
O que dizem os citados
Em nota, a Cruz Vermelha diz que Daniel Gomes da Silva foi afastado do Conselho da instituição. A nota diz também que as empresas prestadoras de serviço, suspeitas de participar de um esquema de fraudes, foram substituídas e tiveram os contratos rescindidos.
O advogado de Daniel Gomes disse que vai provar a inocência dele. A defesa de Michele Louzzada Cardoso disse que ela nunca praticou ou concordou que praticasse qualquer ato ilícito.
O Governo do Rio de Janeiro informou que iniciou auditoria nos contratos das organizações sociais e a prefeitura do Rio disse que está apurando os danos reais aos cofres públicos e quem tem por objetivo a devolução de todos os valores.
O Governo da Paraíba disse ao Fantástico que não teme nenhuma apuração equilibrada e imparcial dos fatos e estará sempre à disposição para prestar informações e assegurar a transparência nos atos administrativos.
O Fantástico não conseguiu contato com a defesa de Tuim. Davi Gomes, o pai de Daniel, foi investigado, mas não denunciado. A reportagem também não conseguiu contato com ele.
O diretor executivo do IPCEP disse que uma diretora e um conselheiro foram afastados. “A imagem do IPCEP é muito mais forte que esse abalo porque na verdade não está se denunciando o IPCEP em si, e sim levantando acusações sobre pessoas que estariam aproveitando do IPCEP”, disse Antônio Rangel, diretor executivo.
“A gente tem diagnosticado no ímpeto do Rio de Janeiro que quem se lança nessas missões de atender a saúde pública como organização social de saúde, via de regra está mal intencionado com o dinheiro público”, comentou Silvio de Carvalho Neto, promotor de justiça do Rio de Janeiro.
O Ministério Público do Rio de Janeiro criou uma ferramenta para apurar o uso do recurso público em todos os estados. Se chama “Ministério Público em Mapas”. Qualquer pessoa pode acessar na internet. Pode ir até a escola, ao hospital e ver quantos leitos hospitalares têm, a verba portada, quantas pessoas fizeram tomografia computadorizadas. Isso pode permitir que médicos das unidades de saúde tenham que trabalhar conforme a denúncia de alguns funcionários:
A corrupção faz com que falte insumos, comida, muitas vezes, lençol, um leito, medicações, Todo tempo nós sentimos isso.
Eu tive que assistir essa parada cardíaca no chão. A ponto de ter que entubar, massagear e fazer absolutamente tudo no chão. O paciente obviamente não sobreviveu. Eu não sei obviamente se sobreviveria, mas isso é desumano.